A diversidade étnico-racial, de gênero, orientação sexual e cultural, dentre outros marcadores das identidades plurais que nos constituem, é riqueza, e não um déficit. Tal premissa é abraçada pelo multiculturalismo, movimento que valoriza a pluralidade e desafia preconceitos ( IVENICKI, 2021 a , b ). Nesse sentido, pesquisa desenvolvida por Almeida et al. (2018) , no Brasil, confirma a relevância das abordagens multiculturais e interseccionais para a educação, sinalizando formas em que as categorias raça e etnia estão, frequentemente, entrelaçadas com outras configurações sociais, como classe, gênero e sexualidade. Os autores citados enfatizam a importância de reconhecer tal sobreposição/interseccionalidade para a formulação de estratégias de ensino e de aprendizagem voltadas à compreensão e ao respeito à diversidade cultural e ao combate à desigualdade no Brasil. No Brasil, novos tempos na educação apresentam-se após o período em que visões distorcidas da diversidade foram predominantes nos debates públicos. Entretanto, desafios imensos também devem ser enfrentados, de modo a combater-se preconceitos e promover a diversidade e a inclusão. Como argumentamos ( IVENICKI, 2021a , b ), a pandemia que tem-se abatido e o período (pós)pandemia, que se vislumbra, devem, por um lado, demonstrar a importância de reconhecer-se que a desigualdade de acesso ao ensino remoto e a tecnologias que o otimizem prejudicaram grande parte dos estudantes de escolas públicas. Formas de promover-se maior e mais efetivo acesso as tais tecnologias devem ser incentivadas no âmbito econômico. Por outro lado, é interessante notar que autores como Rafalow e Puckett (2022) afirmam que, mesmo em sociedades como a norte-americana, onde o acesso a tecnologias digitais é relativamente positivo para toda a camada populacional, ainda persistem desigualdades por outros mecanismos como, por exemplo, o fato de que muitas instituições de ensino superior categorizam as “pegadas digitais” dos alunos em suas redes sociais como parte de um processo informal para avaliá-los e classificá-los. Os autores citados afirmam que tais instituições de ensino operam como “máquinas de triagem”, pois tais classificações levam a desfechos econômicos desiguais, bem como a diferentes chances de vida para os alunos, “previsivelmente ao longo das linhas de raça-etnia, classe, gênero e outros status sociais” (tradução livre, p. 277). Nesse sentido, para além da promoção de acesso mais igualitário a tecnologias e a recursos educacionais, há a necessidade de reforçar a importância de perspectivas multiculturais críticas e decoloniais, que são aquelas que mostram a relevância dos saberes locais, em contraposição a visões colonialistas que apenas valorizam saberes ditos “eruditos”, oriundos de países colonizadores, em detrimento dos conhecimentos endógenos e ancestrais. Considerando essas visões no contexto da pandemia da Covid-19, Tate IV, ex-presidente da AERA – American Educational Research Association , associação internacional norte-americana, de grande relevância na área da educação- argumentou que uma pandemia mais infecciosa vem acontecendo, há muito tempo, entre nós, denominada por ele de a pandemia de segregação, ou seja, uma ideologia da biologia racial que vem “infectando” o mundo, causando uma doença – racismo – que se espalha globalmente, inclusive no Brasil, o que reforça a necessidade de perspectivas multiculturais e interseccionais na educação. A valorização multicultural decolonial também mostrou ser relevante quando, em período pandêmico, todos os países, independentemente da posição econômica e social, foram atingidos pela Covid-19. Nesse sentido, saberes indígenas, ancestrais, de respeito ao meio ambiente, ao equilíbrio entre as espécies e a outras práticas voltadas à natureza, por exemplo, poderiam minimizar a influência viral, na medida em que preservariam espécies diversificadas predadoras daquelas que hospedam o vírus e são responsáveis pelo início de sua propagação. A diversidade cultural, portanto, reforça tais saberes e a importância de combater-se visões hegemônicas e monoculturais na educação e no currículo, visões essas que acabam por prejudicar tantos aspectos da vida, impactando a desigualdade e a exclusão. Observa-se que a vinda de refugiados de várias partes do mundo, resultante de guerras como a da Rússia contra a Ucrânia, e outras situações de perseguição e de desigualdade econômica, tem enfatizado, ainda mais, a relevância da inclusão dessas culturas, inclusive na educação, de modo a não se criar grupos de marginalizados nos países hospedeiros. Nota-se, uma vez mais, como a diversidade é uma vantagem, observando-se, inclusive, que pesquisas desenvolvidas por um casal de turcos que habitava o Reino Unido foram responsáveis pelo desenvolvimento das pesquisas que levaram à elaboração de determinadas vacinas contra a Covid-19. No caso do Brasil, uma nova onda de imigrantes refugiados de condições econômicas, políticas e sociais devastadoras também se apresenta, o que adiciona à pluralidade cultural e à necessidade de condições de absorção digna desses grupos e de uma educação cada vez mais multicultural. Sabemos que um novo governo assumirá em janeiro de 2023, com desafios gigantescos em diversas áreas, incluindo as da cultura e a da educação. Recuperar a visão da educação inclusiva, multicultural e democrática, parece ser o caminho fundamental para o preparo de futuras gerações nos valores da democracia e da diversidade. Trata-se de visão que não deveria ser dependente de governo ou de fatores conjunturais, mas, sim, de Estado, de humanidade, de ética e de moral. É importante sinalizar, nesse sentido, que o Brasil conta com políticas educacionais que se constituem em avanços, na perspectiva da educação multicultural, tais como a Lei No 10.639, de 9 de Janeiro de 2003 ( BRASIL, 2003 ), que altera a Lei no 9.394, de 20 de dezembro de 1996 ( BRASIL, 1996 ), que estabelece as diretrizes e as bases da educação nacional, para incluir no currículo oficial da rede de ensino a obrigatoriedade da temática “História e Cultura Afro-Brasileira”, e a Lei nº 11.645, de 10 março de 2008 ( BRASIL, 2008 ), que torna obrigatório o estudo da história e da cultura indígena e afro-brasileira nos estabelecimentos de ensino fundamental e médio, porém, não prevê a sua obrigatoriedade nos estabelecimentos de ensino superior para os cursos de formação de professores (licenciaturas). Observa-se, também, que o Plano Nacional de Educação ( BRASIL, 2014 ), que estabelece metas para o decênio de 2014 a 2024 e que, portanto, deverá ser avaliado em breve, confirma a importância de reconhecer-se a diversidade e incorporá-la nas práticas educativas, como percebe-se no seguinte extrato: A elaboração de um plano de educação não pode prescindir de incorporar os princípios do respeito aos direitos humanos, à sustentabilidade socioambiental, à valorização da diversidade e da inclusão e à valorização dos profissionais que atuam na educação de milhares de pessoas todos os dias. ( Brasil, 2014 ). Vê-se que a legislação existente já aponta para os princípios da educação multicultural, como horizonte para as ações nesse campo. Desafios apresentam-se na sua concretização. Para tal, o financiamento das universidades e da educação pública faz-se imprescindível, juntamente com a valorização da ciência, de pesquisas quantitativas e qualitativas, do magistério e de perspectivas de currículo e de avaliação coadunadas com a articulação entre excelência e diversidade, para a educação de qualidade e multicultural no Brasil. No presente número da revista Ensaio, artigos abordarão questões plurais, relativas a desafios, tanto em termos macro, relativos a políticas mais amplas e a desafios como o da pandemia da Covid-19, como a questões micro, relativas a sujeitos plurais que atuam em espaços educacionais, O artigo que inicia o número 118, “Uma Análise Longitudinal do IDEB em Municípios de Médio Porte do Estado de São Paulo”, de Mozart Neves Ramos, Leomar da Silva, João Bosco Paraíso da Silva e Antonio José da Costa Filho, faz uma análise longitudinal do Índice de Desenvolvimento da Educação Básica (Ideb) para os anos iniciais do ensino fundamental, de 49 municípios de médio porte, verificando, dentre outros aspectos, variáveis que impactaram o cumprimento de metas para cada edição, entre 2007 e 2019, demonstrando a relevância da avaliação de larga escala para políticas educacionais a serem empreendidas e lições aprendidas para tal. O 2º artigo, “ Challenges and Risks of Remote Education for Children and Adolescents ”, de Candido Alberto Gomes e Carlos Ângelo de Meneses Sousa, focaliza o desafio da transição para a educação remota, durante a pandemia de Covid-19, mostrando os impactos em termos de desigualdade e de adoecimento de professores e estudantes durante seu uso. O artigo seguinte, “Trabalho, Carreira Docente e Educação Especial: Análise dos Planos de Cargos, Carreira e Remuneração dos Estados da Região Norte do Brasil”, de Marcia Maria dos Santos e Ilma de Andrade Barleta, focaliza a questão da diversidade em termos da carreira docente de professores da educação especial das redes estaduais de ensino dos estados da região Norte do Brasil, mostrando as exigências para a sua formação e as condições pecuniárias diferenciadas, de acordo com as regiões. O 4º artigo, “ Promoting Inclusion and Equity in Higher Education: Is this the Role of Distance Learning in Brazil? ”, de autoria de Sidney L. M. Mello, Marcelo J. Meiriño, Walter Leal Filho e Thaís N. da R. Sampaio, buscou analisar em que medida a educação a distância no Brasil tem promovido inclusão, equidade e qualidade, conforme explicitado na Meta de Desenvolvimento Sustentável e no Plano Nacional de Educação (PNE). Resultados mostraram dados que indicaram aumento quantitativo nas matrículas, porém, questionamentos quanto à qualidade oferecida e ao tipo de inclusão proporcionada também foram identificados. O 5º artigo, “Qualidade e Inspeção da Educação: Representações dos Diferentes Atores Educativos”, de Maria João Carvalho e de Luciana Salvador Joana, buscou conhecer as representações de professores, de diretores e de inspetores a respeito do papel da Inspeção-Geral de Educação e Ciência (IGEC) na melhoria da qualidade da educação do Sistema de Ensino de Português, mostrando a força, nas referidas representações do chamado lugar do poder, a partir do qual, tal papel é acionado. O 6º artigo, “Concepções sobre Deficiência em Instituições Públicas e Privadas da Educação Superior”, de Lúcia Pereira Leite, Leonardo Santos Amâncio Cabral e Cristina Broglia Feitosa de Lacerda, a partir de uma amostra de 1763 estudantes, objetivou analisar concepções sobre deficiência, a partir de escala intercultural de Concepções de Deficiência em estudantes de três Instituições da Educação Superior (IES), do estado de São Paulo, apontando caminhos para a superação de atitudes discriminatórias com base na deficiência. O 7º artigo, intitulado : “ Is Assurance of Learning going as it should? A text mining-based review of literature ”, de Andrés Chiappe, Alejandro Emilio Wills e Rolando Andrés Roncancio Rachid, trata de análise de estado da arte sobre a qualidade em ensino superior, a partir de duas categorias utilizadas para essa análise: alinhamento curricular e garantia de aprendizagem. Os resultados indicaram a predominância de uma visão de qualidade ligada ao credenciamento, em detrimento do diálogo com a diversidade acadêmica internacional. O 8º artigo, “A Questão do Protagonismo Juvenil no Ensino Médio Brasileiro: uma Crítica Curricular”, de Roberto Rafael Dias da Silva, discute a noção de protagonismo juvenil no Brasil. Sugere que tal noção passou a ser regulada no currículo, posicionando estudantes como colecionadores de experiências originais, em contextos pouco afeitos às diferenças. O 9º artigo, “O Programa Nacional De Alimentação Escolar (Pnae) a partir da sua Gestão de Descentralização”, de Dario da Silva Monte Nero, Rosineide Pereira Muraback Garcia e Alexandre Americo Almassy Junior, objetivou apresentar a análise da projeção histórica do Programa Nacional de Alimentação Escolar – PNAE, no período de 1995 a 2020, a partir de revisão da literatura e em dados oficiais, mostrando que os investimentos na merenda escolar ultrapassaram o Índice de Preço do Consumidor - IPCA e a própria média da cesta básica nacional, mostrando o seu grande avanço. O 10º artigo, “O Algoritmo do Ideb e as Metas Projetadas para a Educação Brasileira: uma Análise Estatístico-Matemática”, de Denilson Junior Marques Soares, Talita Emidio Andrade Soares e Wagner dos Santos, objetivou analisar a metodologia utilizada na construção do algoritmo do Ideb e na projeção de metas a serem alcançadas em todas as esferas dos sistemas educacionais, de modo a perceber a concepção de qualidade da educação adotada pelo indicador. O 11º artigo, “Acesso, Evasão e Conclusão no Ensino Superior Público: Evidências para uma Coorte de Estudantes”, de Rosileia Lucia Nierotka, Karina Carrasqueira e Alicia Maria Catalano de Bonamino, investiga que características dos estudantes e da instituição estão associadas à evasão e à conclusão de cursos, mostrando estratégias diferenciadas que foram responsáveis pela minimização da evasão, a partir de dados longitudinais da Universidade Federal da Fronteira Sul. O último texto da seção artigos, “A Filosofia no Enem e suas Fontes: Reflexos dos PCNs e Reflexões pós-BNCC”, de Ester Pereira Neves de Macedo, investigou reflexos dos Parâmetros Curriculares Nacionais (PCNs) na cobertura de Filosofia, nas provas de Ciências Humanas, do Exame Nacional do Ensino Médio (Enem), entre 1998 e 2018. Sinalizou desafios e possibilidades para a Filosofia no Enem, no horizonte pós-BNCC. Finalmente, na seção Página Aberta, que fecha o número, denomina-se “ Covid-19 y educación superior: Evaluación de la continuidad didáctica en Cuba ”, de Antonio Nadal Masegosa. O artigo mostra como a Covid-19 atingiu atores educacionais em Cuba, analisando os desafios e as vicissitudes enfrentadas para a continuidade do ensino superior naquele contexto cultural. Boa Leitura!!!