A besta-fera é um tipo monstruoso e híbrido, nem lá nem cá, que vive na borda entre um e outro. O “monstruoso”, como proposto por José Gil, filósofo português, é aquele que rompe com as expectativas que fazemos do que é um ser humano. Ao não se adequar às normas sociais, aquele que segue vivendo, mostra que pode existir fora das estruturas e consequentemente inspira que outros façam o mesmo. Essa pessoa ameaça o sistema opressor e, para aqueles que o perpetuam, é monstruosa. O meu corpo, retratado nas imagens, é um corpo grotesco, que vaza em gordura e dobras, que não atinge os padrões de beleza esperados para corpos que são classificados “femininos”. Meus desejos de expressão no mundo também não atingem o esperado de mim, são masculinos, sexualizados, exagerados. Ao misturar minha imagem com a de animais, colocando-a em dimensão exageradamente grande em relação aos outros componentes do espaço, em posição de ameaça e ameaçado ao mesmo tempo, sugiro sentimentos que perpassam a existência fora das normas em alguns aspectos, mas dentro do considerado ideal em outros. Assim como o monstro, é na complexidade, na borda entre isso e aquilo, macho e fêmea, humano e animal, que encontro morada. Nas colagens, a quebra de fronteiras é explorada, assim como a negação das binariedades. O corpo que se forma, metade humano e metade natureza, remete às pinturas grotescas medievais, que brincavam com as possibilidades de seres além do conhecido (Kayser, “O Grotesco”). Estes seres encantados estão em movimento de construção e destruição ao mesmo tempo, atacam e são atacados, não se definem. Assim como funciona a colagem: une meios diversos, tempos diversos de origens múltiplas para formar algo que é tudo o que já foram essas imagens, mas não é nenhuma delas por inteiro, é híbrido. Besta Fera é uma série de colagens digitais compostas por autorretratos, fotografias de arquivo e imagens de domínio público disponibilizadas online por acervos de museus europeus e estadunidenses. Realizada durante o período de isolamento social ocasionado pela pandemia de covid-19, foi uma forma de experimentar a criação de imagens na impossibilidade de realizar a prática original do artista de retratos fotográficos. Foi exposta como lambe lambes (impressa em papel de gramatura baixa e colada em paredes e muros) no Rio de Janeiro e em Teresópolis - RJ em três ocasiões distintas, em 2022, 2023 e 2024.