Base teórica: Durante a pandemia de COVID-19 em muitos locais as avaliações presenciais relacionadas à pesquisa foram interrompidas, levando à necessidade de adaptação de muitos projetos. Isso fez com que buscássemos métodos alternativos para a avaliação dos sujeitos com ataxia espinocerebelar tipo 3 (SCA3/MJD), que pudessem ser realizados de maneira remota. A SCA3/MJD é uma condição genética rara e neurodegenerativa, causada por uma expansão de trinucleotídeos CAG no gene ATXN3. O quadro clínico desta doença é composto primordialmente por sintomas cerebelares, e a disartria é um dos seus principais achados. A avaliação da fala e da disartria tem sido utilizada no estudo de diversas doenças neurodegenerativas, como biomarcador de progressão ou do início da doença. Dois métodos estão disponíveis. O primeiro e mais bem estabelecido é a análise perceptiva auditiva (APA), realizada pelo julgamento de avaliadores treinados. O segundo método é mais objetivo e é gerado pela análise instrumental ou computadorizada, também chamada de análise acústica. Esse método instrumental de análise da fala vem sendo cada vez mais utilizado no âmbito da pesquisa, mas também no da clínica. Apesar da ampliação dos seus usos, dados sobre padronização, confiabilidade e validade ainda não foram suficientemente obtidos, ainda mais para doenças específicas, como SCA3/MJD. Ao buscar estudar a fala de maneira remota em sujeitos com SCA3/MJD, duas questões principais surgiram como desafios para o nosso trabalho e por este motivo se tornaram as questões de pesquisa deste estudo. A primeira foi encontrar uma escala que pudesse substituir temporariamente a Scale for the Assessment and Rating of Ataxia (SARA) para a definição do estágio atáxico em portadores da mutação causal da SCA3/MJD. A segunda questão foi avaliar a factibilidade, a confiabilidade e a validade dos parâmetros da APA e da análise acústica da fala obtidos de forma habitual e também remota nesta população. Objetivos: O presente estudo foi dividido em dois objetivos principais: (1) identificar se o domínio de atividades da vida diária da Friedreich Ataxia Rating Scale (FARS-ADL) poderia temporariamente substituir o cutoff de 3 pontos da SARA para a definição de indivíduos atáxicos/sintomáticos; (2) avaliar a factibilidade e a confiabilidade das análises perceptiva-auditiva e acústica da fala em indivíduos sintomáticos com SCA3/MJD nas abordagens presencial e remota (via ligação telefônica), e determinar as variáveis com índices de confiabilidade suficientes para uso nessa condição; e trazer subsídios iniciais sobre a validade externa destas variáveis, para seu uso em futuros estudos observacionais na SCA3/MJD. Métodos: O primeiro objetivo envolveu a aplicação das escalas SARA e da FARS-ADL simultaneamente em pessoas sintomáticas com SCA3/MJD e seus familiares em risco. Os sujeitos tiveram os genótipos determinados, sendo que os examinadores e os participantes assintomáticos foram mantidos cegados para seus resultados. Os pontos de corte da FARS-ADL entre indivíduos atáxicos e pré-atáxicos foram definidos por meio de pontos de corte de máxima precisão e por uma curva ROC e índice de Youden. O segundo objetivo envolveu a análise da fala de indivíduos sintomáticos com SCA3/MJD através dos métodos perceptivo-auditivo e acústico, a partir de tarefas que avaliam as bases motoras da fala: fonação, articulação, respiração, ressonância e prosódia. Este estudo foi dividido em dois braços: o braço 1 compreendeu a avaliação presencial da fala em duas coletas com um intervalo de 10 minutos; o braço 2 foi composto de duas coletas da fala (seguindo o mesmo protocolo), sendo uma presencial e outra por ligação telefônica, com intervalo de até 7 dias, e aplicação da escala FARS-ADL. A APA resultou em seis variáveis: grau de disartria e desempenhos nas cinco bases motoras da fala - fonação, respiração, articulação, ressonância e prosódia. A avaliação acústica resultou em 45 variáveis dentre as cinco bases motoras. A partir destas coletas, a confiabilidade teste-reteste e a confiabilidade do método remoto comparado ao presencial foram testadas. As análises de confiabilidade foram obtidas através de coeficiente de correlação intraclasse (ICC) e kappa ponderado. As variáveis que alcançassem confiabilidade aceitável seguiram para validação externa com os parâmetros idade, duração da ataxia, tamanho da expansão CAG e pontuação na FARS-ADL; e variável perceptiva-auditiva relacionada, quando a variável em estudo fosse acústica. Resultados: No primeiro estudo foram incluídos 19 portadores de SCA3/MJD atáxicos, 13 pré-atáxicos e 13 controles relacionados. De acordo com o modelo de máxima precisão, os valores de FARS-ADL inferiores a 4 e superiores a 8 distinguiram pessoas não atáxicas de atáxicas. De acordo com a curva ROC, um escore FARS-ADL maior que 4 pontos fez o mesmo, com sensibilidade e especificidade de 0,94 e 0,92, respectivamente. O segundo estudo incluiu apenas sujeitos sintomáticos com SCA3/MJD, tendo sido dividido em dois braços: o do teste-reteste presencial (braço 1), que incluiu 17 participantes, e do teste presencial-remoto (braço 2), que incluiu outros 20 participantes. As avaliações da fala, tanto presenciais como por telefone, duraram até 15 minutos. A confiabilidade no teste-reteste foi boa ou excelente para todas as variáveis da APA e para 30 das 45 variáveis acústicas analisadas. Já no teste presencial-remoto a variável da APA da articulação e a maioria das variáveis da análise acústica não obtiveram índices adequados de confiabilidade. Apenas as variáveis acústicas referentes à respiração - tempo de fonação máxima (TMF) e tempo de fonação do PATAKA (PTK_phonationtime); referente à articulação - número de sílabas do PATAKA (PTK_nsyll); e referente à prosódia - frequência fundamental mínima na interrogação (Inter_FF_min) apresentaram ICCs de concordância absoluta considerados adequados (>0,7). Para as avaliações presenciais a fonação, a ressonância e a articulação se correlacionaram com a idade e a duração da ataxia, e o grau de disartria se correlacionou apenas com a duração da ataxia. Na análise acústica diversas variáveis correlacionaram-se com idade, duração da ataxia, CAGexp ou com a sua variável da APA correspondente. Para as avaliações remotas as APAs não se correlacionaram com a idade, com a duração da ataxia e com o CAGexp, porém a fonação, a respiração, a ressonância e o grau de disartria se correlacionaram com a FARS-ADL. Os parâmetros acústicos TMF e PTK_phonationtime se correlacionaram com a variável da APA correspondente, com a duração da ataxia e com a FARS-ADL, o PTK_nsyll correlacionou-se apenas com a FARS-ADL e a Int_FF_min apenas com a CAGexp. Conclusão: Avaliações remotas são uma necessidade tanto no ambiente clínico como no de pesquisa, não só durante períodos de pandemia, mas também por outros motivos como maior alcance de pacientes e maior frequência de avaliações. Este tipo de avaliação deve continuar sendo uma demanda no futuro médio, inclusive na SCA3/MJD. A FARS-ADL é uma escala de fácil aplicação remota. Apesar de não detectar ataxia, e sim limitações funcionais, parece ser um bom preditor da presença de ataxia em pessoas em risco para SCA3/MJD. Mais estudos são necessários para confirmar os atuais pontos de corte e precisão da FARS-ADL para este uso temporário e remoto em SCA3/MJD e em outras ataxias hereditárias. As avaliações da fala são métodos não invasivos, fáceis de serem executados e que envolvem instrumentos de amplo acesso (como notebook, smartphone, softwares de uso livre) e outros de relativamente baixo custo (microfone e adaptador). Esse foi o primeiro estudo que avaliou a confiabilidade e a validade da APA e das medidas acústicas em sujeitos com SCA3/MJD. Nossos resultados corroboram os achados de estudos prévios que indicam que a melhor forma de avaliação ainda é presencial, mantendo alguns requisitos mínimos de qualidade e padronização. No entanto, nosso estudo também mostrou que, nos casos em que há a necessidade de avaliação remota, quase todas as variáveis da APA e algumas variáveis da análise acústica têm confiabilidade adequada para seu uso, além de apresentarem índices iniciais de validação externa também aceitáveis. Background: Several face-to-face research evaluations were interrupted during COVID19 pandemic, leading to changes in the design of many research projects. This made us look for remote alternatives for the evaluation of subjects with spinocerebellar ataxia type 3 (SCA3/MJD) that could be carried out remotely. SCA3/MJD is a neurodegenerative genetic condition caused by an expansion of CAG trinucleotides in the ATXN3 gene. The clinical picture of this disease is primarily composed of cerebellar symptoms, and dysarthria is one of its main findings. Speech and dysarthria assessment have been used in the study of several neurodegenerative diseases, as a biomarker of disease progression or onset. Two methods are available. The first and best established is the auditory perceptual analysis (APA), performed by the judgment of trained evaluators. The second method is more objective and is generated by instrumental or computerized analysis, also called acoustic analysis. This instrumental method of speech analysis has been increasingly used in the field of research, but also in the clinic. Despite the expansion of its uses, data on standardization, reliability and validity have not yet been sufficiently obtained, especially for specific diseases such as SCA3/MJD. When seeking to study speech remotely in subjects with SCA3/MJD, two main questions emerged as challenges for our work and therefore became the research questions of this study. The first was to find a scale that could temporarily replace the Scale for the Assessment and Rating of Ataxia (SARA) for defining the ataxic stage in carriers of the SCA3/MJD causal mutation. The second question was to evaluate the feasibility, reliability and validity of the parameters of the APA and of the acoustic analysis of speech obtained in a habitual and also remote way in this population. Objectives: This study was divided into two main objectives: (1) to identify if the Friedreich Ataxia Rating Scale activities of daily living (FARS-ADL) domain could temporarily replace the SARA 3-points cutoff for defining ataxic/symptomatic individuals; (2) to investigate the feasibility and reliability of auditory-perceptual and speech acoustic analysis in symptomatic individuals with SCA3/MJD in face-to-face and remote approaches (by phone call), and to determine the variables with sufficient reliability indices for use in this condition; and to bring initial subsidies on the external validity of these variables, for their use in future observational studies in SCA3/MJD. Methods: For the first objective, SARA and FARS-ADL were simultaneously applied to symptomatic patients with SCA3/MJD and their at-risk family members. The subjects were genotyped, and the examiners and asymptomatic participants were blinded to their results. The FARS-ADL cut-off points between ataxic and pre-ataxic individuals were defined through maximum-accuracy cut-points and by a ROC curve and Youden’s index. The second objective involved the analysis of the speech of symptomatic individuals with SCA3/MJD through auditory-perceptual and acoustic methods, based on tasks that assess the motor bases of speech: phonation, articulation, breathing, resonance and prosody. This study was divided into two arms: arm 1 comprised the face-to-face assessment of speech in two collections with an interval of 10 minutes; arm 2 consisted of two speech collections (following the same protocol), one in person and the other by telephone call, with an interval of up to 7 days, and application of the FARS-ADL scale. APA resulted in six variables: degree of dysarthria and performance in the five motor bases of speech - phonation, breathing, articulation, resonance and prosody. The acoustic evaluation resulted in 45 variables among the five motor bases. With the data from these collections, the test-retest reliability and the reliability of the remote method compared to the face-to-face method were tested. Reliability analyzes were obtained through intraclass correlation coefficient (ICC) and weighted kappa. The variables that reached acceptable reliability were submitted to external validation with the parameters age, duration of ataxia, size of CAG expansion and FARS-ADL score; and related perceptual-auditory variable, when the variable under study was acoustic. Results: The first approach included 19 ataxic, 13 pre-ataxic and 13 related controls. According to the maximum precision model, FARS-ADL values less than 4 and greater than 8 distinguishes non-ataxic from ataxic people, respectively. According to the ROC curve, a FARS-ADL score greater than 4 points did the same, with sensitivity and specificity of 0.94 and 0.92, respectively. In the second approach, only symptomatic subjects with SCA3/MJD were included and was divided into two arms: the face-to-face test-retest (arm 1), which included 17 participants and the in-person versus remote test (arm 2), which included another 20 subjects. Speech assessments, both face-to-face and remote, lasted up to 15 minutes. Test-retest reliability was good or excellent for all APA variables and for 30 of the 45 acoustic variables analyzed. In the face-to-face versus remote test, the articulation APA variable and most of the acoustic analysis variables did not obtain adequate reliability indices. Only the acoustic variables related to breathing - maximum phonation time (MPT) and PATAKA phonation time (PTK_phonationtime); referring to articulation - number of syllables in PATAKA (PTK_nsyll); and referring to prosody - minimum fundamental frequency in interrogation (Inter_FF_min) presented ICCs of absolute agreement considered adequate (>0.7). For face-to-face assessments, phonation, resonance and articulation correlated with age and duration of ataxia, and the degree of dysarthria correlated only with the duration of ataxia. In the acoustic analysis, several variables correlated with age, duration of ataxia, CAGexp or with its corresponding APA variable. For remote assessments, APAs were not correlated with age, duration of ataxia and CAGexp, but phonation, breathing, resonance and degree of dysarthria were correlated with FARS-ADL. The acoustic parameters TMF and PTK_phonationtime correlated with the corresponding APA variable, with the duration of ataxia and with FARS-ADL, PTK_nsyll correlated only with FARS-ADL and Int_FF_min only with CAGexp. Conclusion: Remote assessments are a necessity in both clinical and research environments, and not only during pandemic periods. They allow more patients to be reached and higher frequency of assessments. Electronic communications to provide remote clinical services to patients will continue to be a demand after COVID-19 pandemics, including for SCA3/MJD. The FARS-ADL is a scale that is easy to apply remotely. Despite not detecting ataxia but rather functional limitations, FARS-ADL seems to be a good predictor of the presence of ataxia in people at risk for SCA3/MJD. More studies are needed to confirm the current FARS-ADL cutoffs and accuracy for this temporary and remote use in SCA3/MJD and in other hereditary ataxias. Speech assessments are non-invasive, easy-to-perform methods that involve widely accessible instruments (such as notebooks, smartphones, free softwares) and relatively low-cost instruments (microphone and adapter). This was the first study that investigated the reliability and validity of APA and acoustic measurements in SCA3/MJD subjects. Our results corroborate the findings of previous studies that indicate that the best form of assessment is still face-to-face, maintaining some minimum quality and standardization requirements. However, our study also showed that, in cases where there is a need for remote assessment, almost all APA variables and some acoustic analysis variables have adequate reliability for their use, in addition to presenting acceptable initial indexes of external validation.