Em 1924, ano do bicentenário do nascimento de Kant, Edmund Husserl e Ortega y Gasset avaliam o significado e a importância da filosofia transcendental. Husserl fá-lo numa conferência intitulada “Kant e filosofia transcendental”, publicada apenas postumamente (com diversos acrescentos ao texto original) no volume VII da Husserliana; Ortega em dois artigos, intitulados “Reflexões do centenário” e “Filosofia pura: anexo ao meu folheto ‘Kant’”, agora disponíveis no volume III das Obras Completas. Se, no caso do primeiro autor, se pode falar de uma aproximação ao pensamento kantiano, já no caso do segundo se pode falar de um afastamento, sob a acusação de que a filosofia de Kant não é senão uma variante sofisticada do idealismo da modernidade. Neste sentido, revisitar o pensamento de Kant, para Ortega, significa o mesmo – como ele próprio ironicamente o diz – que ir ao jardim zoológico para ver a girafa. A questão, porém, é muito mais complexa. Tanto na aproximação husserliana como no afastamento orteguiano encontramos um mesmo problema, que ambos tentam resolver com o auxílio do pensamento do filósofo de Königsberg. Sinteticamente, podemos identificar tal problema como sendo o da subjectividade, problema que poderíamos também chamar “o enigma da intencionalidade”, ou o da relação do Eu com a sua circunstância. Ora, a partir daqui os dois autores parecem divergir. Pois se ambos concordam no diagnóstico das “falhas” de Kant, que encontram na sua incapacidade em constituir uma doutrina das faculdades liberta da psicologia empirista e associacionista, já, no que diz respeito à ultrapassagem desta falha, os caminhos que propõem não são coincidentes: 1) Husserl, por um lado, defende a necessidade da redução fenomenológica e, na base desta, de uma reflexão completa sobre os actos da consciência e as objectividades que, como seus correlatos, neles são constituídas; 2) Ortega, por outro, distancia-se do procedimento reflexivo (que encontra já em Kant, para mais tarde o detectar também em Husserl), considerando-o como uma perda da executividade dos actos intencionais que estabelecem a relação entre o Eu e a sua circunstância. Assim, se Husserl considera incompleta a reflexão kantiana sobre os actos, pois Kant adopta um procedimento regressivo que parte do facto do conhecimento mundano para as suas condições de possibilidade subjectivas, igualmente mundanas; Ortega pretende invalidar a legitimidade de qualquer procedimento reflexivo, pois tal procedimento transforma a consciência primária (a “consciência de...”) em objecto de uma consciência secundária que nunca restituirá a espontaneidade da primeira. Por detrás destas duas interpretações da filosofia de Kant e da divergência que, na base delas, existe entre Husserl e Ortega, encontramos duas questões que não perderam a sua actualidade: “quem sou eu?” e “que é o mundo para mim?”, In the bicentenary of Kant's birth, in 1924, Edmund Husserl and Ortega y Gasset evaluate the meaning and importance of transcendental philosophy. Husserl did it in a conference entitled "Kant and transcendental philosophy", published only posthumously (with several additions to the original text) in volume VII of the I Husserliana; Ortega in two articles, entitled "Reflections of the centenary" and "Pure philosophy: an addition CO my booklet `Kane", now available in volume III of the Complete Works. If, in the case of the first author, one can speak of an approximation to Kantian thought, in the case of the second one must speak of a distancing, on the charge that Kant's philosophy is but a sophisticated variant of the idealism of modernity. Revisiting Kant's thought, for Ortega, means the same - as he himself ironically says - as going to the zoo to see the giraffe. The issue, however, is much more complex. Both in the Husserlian approach and in the Orreguian distancing we find the same problem, which both philosophers try to solve with the help of the Konigsberg philosopher's thought. Synthetically, we can identify such a problem as the problem of subjectivity, a problem that we could also call "the enigma of intentionality", or the problem of the relation of the Ego with its circumstance. Now, from this point onwards the two authors seem to diverge. For if both agree on the diagnosis of Kanes "failures", which they find in his inability CO constitute a doctrine of the faculties freed from empiricist and associationist psychology, with regard to overcoming of this failure, the paths they propose are not coincident: 1) Husserl, on the one hand, defends the need for phenomenological reduction and, on the basis of this, for a complete reflection on the acts of consciousness and the objectivities that, as their correlates, are constituted in them; 2) Ortega, on the other hand, distances himself from the reflexive procedure (which he finds already in Kant, only to detect it later in Husserl as well), considering it a loss of the execurivity of the intentional acts that establish the relationship between the Ego and its circumstance. Thus, if Husserl considers Kant's reflection CO be incomplete, since Kant adopts a regressive procedure that starts from mundane knowledge CO grasp its subjective conditions of possibility, equally of a mundane kind; Ortega aims to invalidate the legitimacy of any reflexive procedure, as this procedure transforms the primary consciousness (the "consciousness of ...") into the object of a secondary consciousness that will never be able to restore the spontaneity of the first. Behind these different interpretations of Kant and the divergence, they entail, between Husserl's and Ortega's philosophy, we find two questions that have not lost their relevance: "who am I?" and "what is the world for me?"