Machado Esteves, María Leonor, Universidade de Santiago de Compostela. Facultade de Dereito. Departamento de Dereito Público Especial, Puy Muñoz, Francisco (dir.), Otero Parga, Milagros (dir.), Puy Muñoz, Francisco, and Otero Parga, Milagros
O presente trabalho intenta reflectir sobre a origem, o fundamento e o sentido dos “Crimes contra a Humanidade”. Para o efeito, estudam-se as atitudes culturais e as condicionantes históricas e sociais que se entretecem, formando a complexa textura que envolve derradeira fase, assumidamente imperial e expansionista das potências europeias, a transformação das realidades políticas estaduais europeias de um constitucionalismo liberal para regimes autoritários de tendências totalitárias, o surgimento do ideário nacionalista extremo que se exprime numa hostilidade para com o Outro e a afirmação, oposta ao universalismo humanista, do antagonismo radical que opõe grupos humanos. Ou seja, os principais ingredientes que conduzirão às duas catástrofes bélicas mundiais e à perpetração em grande escala e de forma organizada e metódica das atrocidades que, no Pós II Guerra, foram cognominadas, em instrumentos legislativos, “crimes contra a humanidade”, buscando legitimar e justificar, juridicamente, o julgamento e a punição, por Tribunais Militares Internacionais, dos “maiores responsáveis pela sua prática”. A tese fixa-se na tentativa de compreensão dos elementos essenciais culturais, histórico-políticos e jurídico-filosóficos que permitirão determinar o fundamento e o sentido das normas que, primeiramente, definiram estes crimes no direito internacional, certificando um limite jurídico, intangível, ao poder estadual, sem descurar os modos de aplicação dessas normas pelos Tribunais constituídos no rescaldo da II Guerra Mundial. Defende-se que a estrutura normativa dessa inadmissível ameaça à manutenção íntegra da comunidade humana que constitui, hoje, o crime contra a humanidade compreende, numa dimensão axiológica e funcional-teleológica, uma particular dialéctica entre uma concepção de poder, de direito ou de facto e uma concepção de homem. Uma concepção de poder que não se conforma com a ideia de soberania enquanto poder absoluto, uno, indivisível e incontrolável, mas cuja validação e legitimação obedece a critérios de justiça material e a limites éticos. Um conceito de homem que afirma a identidade inalienável da pessoa, a “suprema dignidade do único” fundada, mais para além da ontologia, no prius originário da significação ética (Lévinas). A ideia de “humanidade”, no desdobramento substantivo ético-axiológico, desenha a fronteira intangível do poder, na dupla dimensão de autonomia ou individualidade e de heteronomia ou alteridade. Os crimes contra a humanidade significarão, assim, a negação da singularidade, a radical não aceitação do direito a ser ou existir como ser humano irredutível e irrepetível na sua individualidade ou subjectividade ou a negação da “ igual pertença à comunidade humana”(Delmas-Marty), negação materializada por um aparelho de poder com domínio sobre uma população em qualquer contexto e em qualquer espaço geográfico. A negação da essência ética do homem, do que o homem é e onde radica a sua dignidade. Daqui se retiram duas importantes consequências. Em primeiro lugar, a irrecusável natureza própria dos crimes contra a humanidade que são crimes autónomos, independentes dos outros crimes internacionais. Em segundo lugar, a convicção de que podem vir a integrar os crimes contra a humanidade todas as condutas emergentes de um poder de iuris ou de facto ( o poder da economia, o poder da tecnologia, o poder da biogenética, poderes próprios da “civilização técnica”) que se considere constituírem uma agressão a essa essência ética que o direito internacional (e o direito interno) decidiu que era imperativo proteger. Por último, postula-se que é dever do jurista reafirmar e renovar os limites ético-jurídicos de que dependem a manutenção e preservação de “uma vida autenticamente humana sobre a terra” (Hans Jonas).