Cabe às organizações desportivas, ODs, serem fatores da plena garantia de isenção, integridade e inclusão, com especial atenção à proteção dos mais vulneráveis, propiciando as condições indispensáveis para que beneficiem de um ambiente seguro no desporto e aí possam dar expressão às suas competências. O desporto, não devendo assumir posições de ativismo político, tem a obrigação, enquanto sistema, de identificar os anátemas de exclusão, potenciais fatores de ameaça à integridade, em determinados contextos sociais, corrigi-los e funcionar como potencial agente catalisador de mudanças sociais globais. O desporto deve pressupor a existência de igualdade de oportunidades na participação de pessoas sem discriminação, por motivos: étnicos, religiosos, deficiência, género, orientação sexual, classe social; não devendo ser ele próprio promotor de ameaças à integridade pela assunção de irracionalidades de critério com consequências no próprio desporto e a eventuais retroversões sociais. Algumas destas ameaças já se encontram sublimadas pela ação diligente e vanguardista do desporto e das ODs nas mudanças positivas no sentido de valorizar o mérito acima de tudo. Outras, como no caso da garantia de equidade de género em funções desportivas relevantes - os que dirigem equipas ou federações nacionais e internacionais - pressupõem ainda um longo caminho a percorrer, quer de enquadramento legislativo, no âmbito do regime jurídico das federações desportivas, quer de repercussão social. Uma das maiores ameaças atuais à integridade desportiva é a questão de género. A participação de transgéneros no desporto tornou-se um tópico atual e sensível. Se, por um lado, há o desejo de inclusão e de assumir a diversidade como algo positivo, incentivando a participação, por outro, corremos o risco de prejudicar, mesmo destruir, a competitividade das mulheres no desporto de alto nível, algo que deve ser protegido. No caso particular existe muita confusão, diria mesmo desconhecimento, misturando conceitos, implicações e decisões. Intersexualidade, transgéneros e identidade não binária são conceitos diferentes, com implicações desportivas diferentes. A variação intersexual nas características físicas, internas e externas, e/ou traços hormonais em desconformidade com o entendimento tradicional das características de um ou dos dois sexos (masculino e feminino), podendo levar a condições de hiperandroginismo (níveis superiores de testosterona), é diferente, quanto à natureza e às implicações dos transgéneros, de alguém que se identifica com um género que é diferente do sexo que lhe foi atribuído à nascença, de uma forma permanente, e diferente, ainda, de alguém que abarca várias identidades de género diferentes dentro de si, que não são estritamente masculinas ou femininas (não binário). Muito já foi discutido sobre esta temática, não existindo ainda conclusões definitivas, que urgem, pela integridade do desporto, nomeadamente: • A obrigatoriedade dos transgéneros, para competirem, serem submetidos a intervenções cirúrgicas (2003); • As investigações públicas sobre hiperandroginismo sobre o caso de Caster Semenya’s (2009); • A decisão do tribunal arbitral do desporto internacional, TAD, (2015), acerca da validade das regras de elegibilidade da federação Internacional de Atletismo para atletas com diferenças de desenvolvimento sexual, contestada pela bicampeã olímpica Caster Semenya, e o acordo de consenso sobre a não obrigatoriedade da intervenção cirúrgica, desde que os níveis de testosterona para atletas transgéneras femininos não ultrapassem os 10 nanomole por litro de sangue (nmol/L) (2015); • A decisão da organização mundial da saúde de remover as perturbações de identidade de género do manual global de doenças (2019); • A resolução dos tribunais Suíços sobe a decisão do TAD no caso “Caster Semenya’s” (2020), e o relatório da organização mundial dos direitos humanos, acerca da descriminação no desporto nos casos de identidade de género (2020); • A participação, nos jogos Olímpicos de Tóquio, de atletas transgéneros pela primeira vez (2021). Neste âmbito, há que diferenciar a participação dos transgéneros no desporto da sua inclusão no desporto de elite. Os fundamentos desta subdivisão são claros. O rendimento é sempre o resultado de uma estrutura multifatorial que engloba variáveis que o determinam: psicológicas, fisiológicas, genéticas (potencial), sociais, contextuais, etc. A inclusão de atletas, pela presença identificada de características específicas nos casos acima citados, fora do quadro normativo regular, de acordo com a estrutura do rendimento que a assiste, com vantagens competitivas evidentes, pode conduzir o desporto a um fator de segregacionismo, à imagem da exclusão social que se reclama e que se pretende combater. Não é muito diferente classificar algumas formas de melhoria de desempenho como antiéticas, como o doping, porque negam a característica essencial inerente do desporto que lhe confere valor, a naturalidade,e concordar com outras que, apesar da naturalidade aparente, intersexuais, ou assumida, transgéneros, continuam a ser antiéticas. Ao fazê-lo, estamos a incorrer no erro de ao incluir, excluir os que por norma deveriam ter condições para disputar o sucesso. É claro que a inclusão deve ser uma prioridade. Todos devem ter a oportunidade de participar no desporto de uma forma segura e sem descriminação. A participação desportiva deve ser um direito para todos. Todavia, a participação no desporto de alto rendimento deve ser restrita a quem tem as condições necessárias e suficientes para tal, pugnando pela não descriminação, mas prevenindo vantagens desleais que excluem, de forma sistemática, atletas do sucesso desportivo pelo benefício que decorre do uso das regras de inclusão. A discussão deve ser ponderada, por forma a não redundar em posições extremadas, que optem ou pelo descontrolo, irrestrito, das categorias de competição, existindo tantas quantas as perceções individuais; ou pela dissolução de todas as categorias de competição permitindo que todos compitam da forma que consideram, formato Open. O foco deve estar na performance, de tal forma que todos os atletas possam ter uma oportunidade justa de competir e disputar os lugares de pódio, de acordo com a estrutura específica e multifatorial de rendimento de cada desporto, valorizando nesta análise as vantagens e desvantagens que decorrem da participação. Em suma, o enquadramento legal e consequente normativa desportiva deve surgir como resultado da ponderação de dois planos de análise: a questão fisiológica, sobre se há ou não vantagens competitivas inerentes à participação dos transgéneros, intersexuais, e não binários, mais concretamente homens de identidade sexual, mas mulheres em identidade de género, em categorias femininas e se, apesar destas vantagens, a questão da inclusão/exclusão na ótica dos direitos humanos deve prevalecer. Biologicamente, os atletas do sexo feminino, conceito tradicional, possuem o mesmo tipo de cromossomas sexuais (XX), e por isso chamado de sexo homogâmico. Os atletas do sexo masculino, conceito tradicional, são o sexo heterogâmico, contendo dois tipos distintos de cromossomas sexuais, um X e outro Y. Na ótica da performance os estudos fisiológicos são claros. Uma das discussões reside no limite superior, recomendado, dos níveis de testosterona dos atletas do sexo feminino em competições de elite. As determinações atuais do comité Olímpico Internacional determinam que as mulheres transgénero, devem ter um nível de testosterona inferior a 10 nmol/L, aproximadamente o limite inferior dos valores masculinos típicos. Estas recomendações esquecem, no entanto, de referir que aproximadamente 99% das mulheres têm níveis de testosterona que variam de 0,12 a 1,79 nmol/L. Esta recomendação valida, por isso, uma competição feminina com “alguns” atletas com níveis hormonais de homens. Outros estudos, de meta-análise, sobre atletas transgéneros concluíram que mulheres transgénero mantêm uma vantagem de 12% em testes de corrida, mesmo depois de tomarem hormonas supressoras de testosterona por dois anos. É inequívoco que, na generalidade dos desportos, as evidências científicas concluam que as diretrizes atuais do Comité Olímpico Internacional confere às mulheres transgénero e intersexuais uma “vantagem competitiva injusta” sobre as mulheres biológicas. Na ótica dos direitos humanos, encarar as desconformidades hormonais, no caso dos intersexuais, e as opções de identidade de género, no caso dos transgéneros, ou da falta dela, no caso dos não binários, adequando o quadro normativo para prover a exceção em detrimento da regra (masculino e ou feminino) incluindo, é a assunção da exclusão dos que por opção não se enquadram na exceção. Em suma, é tornar o desporto a antítese da naturalidade que decorre das condições de inclusão iniciais. O desporto não pode ser ele próprio indutor de regras que possam favorecer as discriminações. A não ser assim, poderemos estar a assistir à criação de classes desportivas que sejam identitárias de uma natureza específica e mutuamente exclusiva: competições rácicas, competições religiosas, competições de género, competições naturais, competições artificiais, etc. As regras do desporto devem integrar, de uma forma não arbitrária, a oportunidade de manifestação de competência e de virtude de um atleta face a outros. Só assim, e rejeitando os artificialismos que alteram a naturalidade e harmonizam a variabilidade humana característica, se pode preservar os valores intrínsecos do desporto! É óbvio que a assunção da inclusão nestes casos provocará uma nova etapa no quadro ético de valorização axiológica no desporto. Para que a pureza e a integridade das competições passem pela valorização da participação, é necessário a existência de categorias com classes cujos critérios estejam dependentes dos valores normativos necessários para permitir que a aleatoriedade esteja subordinada, não às características escolhidas potencialmente do atleta, mas à naturalidade do seu processo de desenvolvimento, isto é, ao treino. Posto isto, e para evitar paradoxos cujo absurdo pode levar a fundamentalismos que vão inquinar o desporto e o seu quadro axiológico de referência, só há uma solução que integre várias condições: 1) os critérios devem ser baseados em evidências científicas; (2) o primado da saúde deve ser protegido, tornando desnecessários procedimentos de tratamento específicos; (3) os critérios não devem envolver o exame invasivo dos corpos (direitos humanos); (4) os critérios devem ser justos, neutros e imparciais, privilegiando a privacidade dos atletas. Nesta ótica só vejo uma de duas soluções: • A mais absurda, que roça o limite do direito à privacidade, mas passível, seria a criação de mais uma categoria para além da participação dos homens e mulheres, a dos intersexuais, transgéneros e não binários, como categoria de competição oficial, ou; • A utilização do critério biológico para além das naturalidades, intersexuais, e artificialidades biológicas, transgéneros e não binários, para definição, em caso de dúvida da categoria. O factor Y: em caso de dúvidas, quem tiver o cromossoma Y, só pode competir em competições da categoria masculina. Todos os restantes (XX) podem competir em competições da categoria feminina. As categorias de classificação desportiva em qualquer desporto devem responder sempre ao primado da justiça, com base na análise das vantagens e não a outros critérios de potencialidade que excecionam os atletas.